10 janeiro, 2006

Rota da paz

Peço desculpa a quem vai fartar-se de ler isto, por ser grande, por ser chato, por não fazer sentido. A minha visão é apenas a minha visão. Não é a única e, com certeza, não é a última, nem a melhor. Por enquanto, é a minha melhor. Se, entretanto, alguém achar que pode torná-la melhor, faça favor!

Um debate sobre a paz, uma conversa ou discussão sobre a paz, verifica-se, não é sobre a paz, mas antes sobre a guerra, ou guerras. Fala-se da guerra distante, da guerra exterior, na guerra dos outros. Os discursos são mais ou menos inflamados, o assunto é pertinente e as ideias são articuladas em abordagens intelectualmente pungentes, muitas vezes dignas de mérito, sapiência e erudição académica. Salta para a mesa uma panóplia de elaborações ideológicas, políticas, sociológicas, religiosas, civilizacionais e o assunto é um assunto sério. As guerras dos outros e as pazes que os outros têm de fazer são um assunto mesmo muito sério. Há, em todo o lado, especialistas, analistas e comentadores que conferem seriedade e sobriedade ao tema. Fala-se de economia, política, poder, miséria, terror... Fala-se das causas e efeitos dos conflitos e o assunto é nobre, inteligente, pertinente, urgente e levado muito a sério, porque a paz (ou melhor a guerra) é um assunto muito sério.
Sente-se a necessidade de haver paz e acredita-se que, na presença de determinados factores e na ausência de outros, a paz seria possível; só não é porque os Homens não querem. E, se não querem é porque há interesses de várias ordens a impedir a emergência da paz. É uma questão de vontade. Concordo. A paz exterior, sublinho, é um assunto sério, merece a nossa atenção e intervenção. Também concordo.
Agora mudo de assunto (ou não) e falo de paz interior. Diria: “Sem paz interior, não é possível garantir uma paz exterior sustentada”. Repito: “A paz interior é fundamental!”.
Bem... este assunto não é assim tão sério. Não merece (não tem merecido) o respeito da massa crítica erudita. Não tem qualquer valor objectivo num discurso que se queira respeitável, sensato, realista, inteligente, inteligível, etc.
A paz interior tem estado na prateleira dos misticismos e dogmas de fé - alguns acreditam nisso porque sim. É um produto marginal, associado a práticas monásticas, místicas, alternativas, mais ou menos ingénuas e tolas e, sobretudo, de difícil credibilidade. Enquanto a paz exterior se inscreve na ordem da vontade dos Homens, a paz interior é remetida para o campo das crenças do indivíduo.
Assim sendo, a paz interior não é um objectivo globalmente nobre, nem inteligente, nem lucrativo. Porquê? Porque o individuo não se vê integrado no mundo. Não se sente uma célula do organismo. Pelo contrário, sente que não faz parte “daquilo” que os outros andam a ser e fazer. Mas, sobretudo, porque não acredita (porque assume que a paz interior se inscreve num quadro de fé, mais ou menos alternativo). Não acredita que o indivíduo possa viver em estado de paz interior; crê que o ser humano é por natureza conflituoso e que a natureza humana é essencialmente “má”. Porque o ser humano não é capaz de estar bem, pacificado, em estado de bem-estar. Porque a paz interior e a felicidade são ilusões. O assunto não é sério e um mesmo painel de ilustres especialistas em paz/guerra exterior esboçaria um sorriso trocista de menosprezo e demérito pelo tema.

Como é possível investir tanto tempo, energia e recursos a discutir a paz/guerra no mundo, se não se acredita na paz no indivíduo, ou melhor, no indivíduo em paz? Como é possível ter esperança, sentir a necessidade da haver paz no mundo, se se despreza e desvaloriza a paz interior?

E, a ausência de guerra, de conflito armado, é sinónimo de paz? Há paz nos Balcãs? Há paz na Europa? Há paz em Portugal? Há paz no teu bairro? Há paz na tua família? Há paz no teu local de trabalho? Há paz nas tuas relações pessoais? Há paz dentro de ti?
Até onde a paz é uma assunto sério para ti? Até onde te empenharias a discutir a paz? Em que parte paraste?

Há paz em vários planos, em várias esferas, em vários níveis hierárquicos. Como bonecas russas, cada nível supera o outro, envolvendo-o, adicionando-lhe mais tecido, abraçando mais uma dimensão, até à integração em, e de todas as esferas, escalas e planos. Como do átomo para molécula, da molécula para a célula, da célula para o órgão, do órgão para o organismo, no fim tudo é Um só corpo. E no fim, também só há uma Paz: A paz integral, a paz que integra todos os níveis de existência do indivíduo.

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