A simbologia da máscara existe desde os primórdios da humanidade. Associada à experiência espiritual e ritualística, permitia ao seu utilizador enfrentar, encarar ou assumir uma determinada força ou poder.
No antigo Egipto, o uso da máscara visava revelar e fixar o rosto eterno, incorruptível e supratemporal. A beleza intrínseca, a interior, era revelada e fixada através da própria máscara. Durante a passagem pela morte, o defunto mumificado era adornado com uma máscara de ouro. Na realidade, não se tratava de um adorno – a esta máscara correspondia ao verdadeiro rosto do indivíduo, a face do seu espírito eterno, a beleza da sua alma. E, nesse sentido, a máscara é uma encontro face-a-face, sem truques ou qualquer corrupção da verdade.
Tutankamón, Faraó egípcio da XVIII dinastia, 1360 a.C.
Na Grécia, o uso da máscara, no teatro, reportava também à fixação do rosto do herói trágico.
E, mais uma vez, a máscara não tinha o propósito de esconder, mas sim de revelar. De certa forma, é essa a função da máscara no contexto da figura mítica de Dionísio, deus helénico associado à folia, música, dança, embriaguez, êxtase e prazer sexual. O uso da máscara era, neste sentido, um veículo de libertação. Através da entrega ao êxtase, da libertação do que está oculto, fechado e constrito por trás da máscara o indivíduo rompia, soltava e soltava-se das suas próprias barreiras. É esse o fundamento do uso da máscara no festejos de Carnaval. Ela não é um veículo de disfarce ou ocultação da identidade, mas um facilitador da libertação do eu enclausurado.
Busto de Dionísio, época romana, século II d.C.
O Carnaval é celebrado na época do regresso da vida em toda a Natureza. Este “ritual iniciático”, de entrega à folia, ao êxtase e à celebração, é uma expressão da necessária libertação do indivíduo para um novo ciclo de vida. O uso da máscara, enquanto catalisador da saída para fora e da libertação daquilo que está preso na rigidez dos padrões de comportamento, tem uma relação de proximidade muito curiosa com o despontar das plantas, com o nascimento das primeiras crias nos rebanhos, com toda a explosão de vida que se pressente e verifica já nesta época. É o 'sair para fora', o 'deixar subir' o que estava submerso, preso, tapado. É nada mais nada menos que nascer. Seja um ser humano, um pinto ou uma semente germinada, o ritual é este: vir ao de cima, trazer à superfície, romper e revelar.
Máscara típica do carnaval de Veneza
Portanto, o uso da máscara não tem de ser entendido como uma estratégia perniciosa de vida. Neste sentido, tal como descrevi antes, ele é um elemento possibilitador e facilitador da libertação do indivíduo – pode ser o objecto que assiste ao nascimento do eu, o qual se renova a cada ciclo.
A questão da máscara está subjacente a questões basilares do pensamento ocidental. Ela comporta a dualidade e o paradoxo da revelação do eu, ou, pelo contrário, o da sua ocultação – a verdade e a mentira, a honestidade ou a dissimulação, a luz e as trevas.
Quando, no post anterior, me reportei à máscara, termo do qual derivou a palavra “pessoa” (de persona, do latim), estava a referir-me sobretudo ao mistério da identidade do indivíduo e ao apaixonante caminho de descoberta e reencontro com o que “eu sou”.
Quando nascemos, atribuem-nos um nome e educam-nos segundo padrões sociais e culturais que não foram criados ou definidos por nós. Ao longo da vida vamos desenhando e decidindo qual a nossa personalidade a partir dos episódios da nossa vivência. Essa é, no entanto, a experiência da pessoa, a qual poderia ser outra qualquer, mediante quaisquer outras circunstâncias, ou respostas às circunstâncias. No que diz respeito à identidade, ela é, na minha opinião, muitas vezes um sussurro interior, quantas vezes amordaçado e decalcado pelas máscaras das convenções, forçadas pelas receitas de vida, com setas apontadas para uma fórmula de sucesso inventada por alguém antes de nós e repetidas por nós próprios. Muitas vezes, a identidade é ocultada por esta máscara moderna, através da qual a personalidade encontra justificações para tudo, inclusive para usar máscaras, pois acredita que dar o rosto é contraproducente, é um sinal de ingenuidade e meio-caminho andado para ser engolido.
A verdade, é que esta convicção é uma crença da nossa cultura. Outras culturas não temem dar o rosto ou "usar" sempre o mesmo - único e honesto, o seu próprio, firme, contudo doce, totalmente aberto e desarmado. Eis um rosto, uma máscara de carne que revela um espírito límpido e um coração aberto:
Dalai Lama
2 comentários:
gostava de perceber, sa.ra, porque certos posts não têm comments ,como é o caso deste tão interessante e tão actual. Ontem não o vi, talvez não fosse o momento...
e agora estou com pressa para o poder comentar mas já cá volto!
Beijos para ti. tenho alguém bem próximo de mim q se chama sara. por isso gosto do teu nome...
algumas pessoas dizem-me que certos posts, pela sua extensão, ou carga (mt informação) se tornam objectos de difícil digestão...
não sei... mas, sabes, tb não é importante! embora seja muito enriquecedor a troca de ideias e este diálogo... não espero nada!
escrevo porque preciso, porque faz parte do meu caminho!
é bom encontrar outros pregrinos... trocar ideias, partilhar experiências... mas o silêncio e solidão também fazem parte deste percurso!
obrigada pelas tuas visitas! obrigada pela tua presença e intervenção!
beijos!
tem um dia feliz!
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