Morrer é deixar morrer em nós próprios aquilo que já não nos serve ou alimentaEsta não é uma época de morte e, por isso, não planeava falar sobre ela. Mas, de facto, é impossível falar em vida e celebrar o seu retorno, sem mencionar a morte. A Natureza é sábia e mostra-nos a fecunda alternância entre a noite e o dia, o caos e a ordem, a vida e a morte. O Inverno está a terminar e com a chegada da Primavera a promessa de um renascimento torna-se concreto. Não há nenhum misticismo nisto: a Natureza renova-se. Os prados, antes adormecidos, enchem-se de flores, as aves retornam e constroem os seus ninhos. Há crias novas nos rebanhos e folhas e flores a rebentar nas árvores. Isto é o renascimento. Estamos aqui, somos da Terra, e participamos deste e neste eterno ciclo de morte e renascimento.
Seguir a NaturezaA “morte” ocorre no Outono e no Inverno. As copas da árvores caem, a seiva recolhe-se e muitos animais hibernam. É tempo de recolhimento, de viragem para o interior – de olhar para dentro. A morte é, então, a morte em nós próprios, daquilo que já não produz vida em nós. Assim como a terra, no fim da colheitas, precisa de repouso, limpeza e reequilibrar-se, também nós precisamos parar, limpar os detritos, arrancar as raízes podres, lavrar a arejar a nossa matéria, o nosso coração, a nossa alma e o nosso espírito. Deste modo, em sintonia com a Natureza, deixamos ir o que nos pesa, libertamo-nos daquilo que já não é fecundo, limpamos a nosso coração e escavamos fundo em nós, para enterrar as sementes de uma nova vida.
Morrer é renunciar ao que já não nos serve – crenças, interesses, ideias, hábitos, comportamentos, mágoas, ressentimentos, expectativas, frustrações, etc. Morrer é libertarmo-nos de um passado, agora, estéril, esgotado, como a terra que já deu fruto. Morrer é perdoar, a nós próprios e aos outros. É aceitar que fizemos o melhor que podíamos e sabíamos e deixar ir, sem mágoa, aquilo que já não tem remédio.
Morrer bemE é assim que preparamos a nossa própria terra para uma nova época de vida. É também assim que a fertilizamos e lhe damos força. No fundo de nós prepara-se a intenção e o desejo de criar algo novo, de fazer diferente, de crescer - de renascer.
Toda a Natureza participa deste mistério da morte e renascimento. As árvores deixam ir as folhas velhas e os animais não contrariam a necessidade perder o pelo ou a plumagem. Tudo voltará, renovado, revigorado. O nosso corpo faz o mesmo. Todos os dias morrem milhares de células no nosso corpo. A apoptose (morte celular programada) é uma estratégia do nosso organismo que garante a saúde dos nossos tecidos e órgãos. Sem estas “mortes” estaríamos atolados em células teimosamente apegadas à vida e estaríamos condenados à doença e à morte efectiva. As nossas células vivem a sua vida e morrem a sua morte. É um processo extraordinário de regeneração constante. Depois de cumprirem a sua missão, de fazerem o que têm de fazer, de contribuírem com a sua vida para o funcionamento saudável do organismo, as nossas células “suicidam-se”. Outras já estão a postos para assumir os seus lugares, oriundas da "mágica" maternidade onde se formam e nascem as células estaminais – a medula espinal, a central da regeneração celular.
Morrer é, neste sentido, um gesto de amor para connosco. É deixar ir, é libertar, abrir espaço para o novo e para a regeneração de nós próprios e das nossas vidas. Dói, às vezes dói muito desapegarmo-nos de certas coisas. Mas dói mais prendermo-nos e negarmo-nos a liberdade de deixar ir o passado. Assim como a chuva leva os detritos, assim como o rio arrasta a folha, deixemos ir o que não mais constitui fonte de vida e alimento ao nosso coração.
A força que nos moveNascer também dói. O feto tem de rasgar a carne da mãe, o pinto tem de partir a casca do ovo, a planta tem de furar, primeiro o invólucro da semente e depois a terra, para vencer a linha da superfície. Nascer, implica deixar alguma coisa para trás que, por muito que nos tivesse sido útil, ou até benéfico, não é mais. O impulso para a vida começa com o desconforto, a sensação de estar preso, retido. (As contracções antes, durante e depois do parto doem). Este impulso que nos leva a deixar o útero, que leva a planta a furar a terra, que instiga a borboleta a sair do casulo é o Amor!
É o amor que nos move e que move tudo neste Universo em eterna transformação e em permanente alternância. É o amor que nos liberta e que nos dá ânimo para voltar a nascer, para continuar o nosso caminho, para seguir e realizar a nossa Obra! Deus tirou férias e deixou-nos a criar por Ele e como Ele. Deixou-nos com (os seus) olhos, ouvidos, voz, mãos, inteligência, coração e consciência para compreendermos a Obra e para a repetirmos, ano após ano, ciclo a após ciclo, como no Princípio. Sempre que semeamos, seja na terra, no nosso coração ou no nosso útero, estamos a repetir a Obra da Criação, a grande Obra da Vida: o Amor!Um beijo muito especial a NoiteEstrelada